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domingo, 24 de julho de 2011

Estados da Alma - 4

Com uma directa no pêlo, trabalhei durante o turno da noite, parti de Vila Nova de Santo André rumo a Faro, quinta-feira, dia 14, pelas 10h e 30m, com os meus companheiros das duas rodas, o Lázaro, o Prof e o filho David à pendura, e os “debutantes” J. Ferreira e L. Amaral, nestas andanças de concentrações.
Rolámos nas calminhas, um dos elementos do grupo “carrega” uma pesada pena suspensa ás costas, nada de outros excessos por enquanto, uma paragem no Rogil para saborear as magníficas empadas, e cerca das 13 horas chegamos ao destino. O sol estava no pico, o calor escaldava, a fila para adquirir os ingressos ao invés da habitual quinta-feira de anos anteriores, era enorme.
Como nunca tinha visto.
Bilhetes de acesso comprados, e enquanto os meus companheiros foram  montar os mini hotéis ambulantes, eu fui reservar uma mesa para almoço no Ateliê da Comida, o Restaurante Santo António, em Faro.
Começou logo ali, o rotineiro abuso que se manteria, para mim, até madrugada alta de sábado por terras do barlavento algarvio.
Se duvidas havia, todas caíram por terra.
A XXX Concentração Internacional de Motos, Faro 2011, bateu todos os records.
Mais de trinta mil inscritos no Vale das Almas, cada vez mais a Catedral do Motociclismo Europeu.
O Culto, que juntou milhares de pessoas, numa festa colorida e barulhenta, afinal, está forte no Vale das Almas, e demasiado grande para apenas três dias.
Uma das grandes atracções do encontro deste ano foi o bar suspenso até cerca de 40 metros do chão, uma plataforma, onde não faltou cerveja e música, içada por um guindaste.
"Quem não tem vertigens pode ir lá acima, tem uma vista espectacular”, diziam os primeiros fregueses.   
Cá o rapaz andou sempre, por opção, pelos bares mais térreos.
A banda britânica de heavy-metal "Iron Maiden” encabeçava o cartaz musical da concentração e subiu ao palco, logo no primeiro dia do evento num concerto cuja abertura estava a cargo dos algarvios Mindlock, que acabaram por faltar.
Mas a festa continuou.
Sábado pela manhã, como previamente tinha definido, regressei a Santo André, uma curta estadia de três horas, e parti rumo a Penamacor, onde tinha combinado uma jantarada com dois casais amigos.
Com a rodagem totalmente feita, estava na hora de testar mais à séria a minha nova máquina, a Kawasaki 1400 GTR.
Com mais de trezentos quilos, basta tirá-la do descanso central para perceber que não me vou sentar em nenhum “brinquedo”. Já completamente habituado à altura do banco, habilmente rebaixado pelo meu Amigo Mineiro, estofador de profissão em Penamacor, é chegado o momento mágico de dar ao arranque. Uns minutos de aquecimento ao ralenti, rodo o punho naquele instinto de “ligação” com a máquina e sinto imediatamente uma fonte inesgotável de potência.
Engreno a primeira velocidade e faço-me à estrada.
Largo a embraiagem, arranca quase ao ralenti, em andamento sinto-me quase o rei do mundo.
Entre Alcácer do Sal e Santa Susana cedo à tentação e começo a abusar da caixa e a enrolar o punho. Rapidamente percebo pela inclinação que rolo num ritmo muita para além do de passeio e sei que estou no limite da minha coragem.
Chego aos “rectões” antes de Ciborro.
Era imperativo ouvir o “ronco do escape” acima das oito mil rotações, e testar a eficiência do controlo de tracção, sem ligar minimamente a consumos, que se revelam proibitivos aqueles regimes de motor. “Três abaixo” e começo a trancar punho. O ronco é assustador mas maravilhoso, quase me levou a um “orgasmo timpânico”, a velocidade bateu nos dois ponto quatro, circulava com top-case e malas laterais. Depois, travar, é só apertar a manete, o ABS e o fantástico equilíbrio da ciclística fazem o resto.
O prazer de condução está garantido e a protecção aerodinâmica é excelente.
Que Maquinão!!!
Não tenho sombra de dúvidas. Uma Mota digna de uma Diva.
Contente e satisfeito com a Minha Kawasaki 1400, alegre e divertido com o prazer da condução cheguei a Penamacor, parei junto ao marco do correio, no Alto da Praça, assim que tirei o capacete, fui logo obsequiado com uma Sagres fresquinha, oferta do meu Grande Amigo Luís, nascido em 61, Pé Leve de alcunha até morrer.
Lanche, jantar, bem regado a tinto da zona de excelente uva, e acabo a noite a ouvir uma espectacular banda a tocar música dos anos sessenta, os “4 Sixties Band”, na esplanada do Bar O Quartel, na Praça Nova, onde outras fresquinhas bebi pela minha caneca de inox, sempre “suada” pelo exterior, que comprei em S. Paulo, Brasil, a caminho das cataratas da Foz do Iguaçu, e que sempre me acompanha nos meus passeios de mota.
Os hectolitros derramados naquela caneca são já incontáveis.
Deixo aqui o registo de uma promessa feita, ao Paulo e ao Duarte, a aceleração da decomposição etílica não me trava a memória, de duas canecas de inox, iguais à que eu uso, nada de imitações baratas, compradas nas lojas dos naturais do país dos habitantes com os olhos rasgados.
Falo de canecas em aço inoxidável de estrutura cristalina, com composição típica de 18% de cromo e 10% de níquel, frequentemente usado no fabrico de talheres, vulgarmente conhecido por aço inoxidável, austenítico, 18 / 10.
Domingo, para retemperar as forças nada melhor para almoço, no Restaurante o Zé Galante, que uma miga de peixe, soberbamente confeccionada à moda de Vila Velha de Ródão e um ensopadinho de veado, convenientemente regado.
Já no Café Central em Penamacor, a beber uma água das pedras, chega para tomar café um grupo de Amigas. Pergunta-me a Minha Amiguinha Maria, se andar nesta mota era muito diferente de andar na outra, referia-se à minha ex-velhinha Suzuki, a mota onde fez o baptismo das duas rodas, tal como a Bárbara, numa curta viagem até ao Recinto de Nossa Senhora do Incenso, a Padroeira do concelho de Penamacor.
Lá lhe expliquei que normalmente não há palavras para descrever como é andar de mota, e mais difícil ainda quando se rola acima dos dois zero zero. São sensações inexplicáveis. Há palavras para descrever o que é conduzir uma mota, mas nunca são completas. Diversão, adrenalina, prazer, felicidade de contemplar a natureza de uma outra forma. Podia dizer muitas mais, mas nenhuma se aproxima do que é andar de mota. Nem que seja à pendura.
Percebi pelo brilho nos olhos dela que estava com vontade de dar uma voltinha naquela Kawasaki 1400 GTR. As crianças são a vida mais pura que podemos carregar nos dias. Fazem-nos trilhar caminho e sentir a vivacidade no ar.
Fui buscar um capacete, e depois da permissão da mãe, decidi que iria fazer o mesmo trajecto, embora em sentido oposto, ao que eu fiz, sozinho, aos comandos da Flandria do meu Pai, motinha que aprendi a conduzir no verão de 1971, tinha eu dez anos de idade, e que hoje guardo religiosamente, completamente restaurada, na minha garagem, em 25 de Setembro de 1975, o dia em que tirei a minha licença de condução de velocípedes com motor auxiliar, a celebérrima “verdinha”:
Penamacor, Sr.ª dos Caminhos, Memória, Águas, Aldeia do Bispo, Ponte das Taliscas, Água Férrea, Penamacor.
Foi à época, Uma Grande Viagem, que não era de todo uma viagem grande.
Foi o desabrochar da minha alma errante de motociclista viajante.
Terminada a viagem, mais duas Penduras alinharam, uma num percurso mais curto.
A todas as Penduras, e depois de alertadas para o efeito, e sem medo, medo é palavra que não entra nas motas, brindei na variante com uma rápida e alucinante subida de rotação até ás dez mil RPM, o que levou a terceira velocidade a ultrapassar a barreira dos dois centos de quilómetros, e o pneu traseiro a um precoce desgaste.
O som daquele escape parecia uma declaração de guerra.
Lindamente ensurdecedor.
Mas as surpresas para a pequena Maria não ficaram por aqui. No final do dia, e porque ia para o parque de campismo do Freixial com os seu grupo de escoteiros, decidi que iria levá-la na minha mota. Fomos a cabeça da caravana. Chegados ao destino, vi naquele rosto de menina que o é, uma genuína suave felicidade e uma enorme alegria incendiária, que encantou duplamente a minha viagem de regresso à Vila. Antes tinha visto uns lindos cabelos cor de seara madura.
Fechei o Central, a beber mais umas fresquinhas com uns amigos, antes de entregar o corpo ao cuidado do vale dos lençóis.
Segunda-feira, pela manhã, a prioridade foi cozer o bordado da participação na XXX Concentração Internacional de Faro no meu colete de cabedal. Isso fez o Mineiro, como só ele sabe, e com a perfeição e brio que a ele se impõe nas variadas tarefas que executa.
Almoço no “Venetas”, um passeio pela Vila para bater umas chapas fotográficas, e começam ao final da tarde os preparativos para confeccionar dois valentes galos do campo para jantar.
Que deliciosos estavam. As sobremesas divinais.
Seguiu-se a degustação de uns cálices de “ginginha caseirinha”. Primava pela excelência.
Serviu por graça, como um combustível seco para escancarar um frágil coração.
Uma ida ao bar da Vila, mais uma bjecas fresquinhas, e, uns desabafos nostálgicos de um período vivido de fortes vícios da minha vida, sobretudo, sexo.
Há sempre homens nos dois extremos da curva normal:
A minoria que tem apetite a mais e a outra, que tem desejo a menos.
Uma só mão chegava para contar os meus amigos deste tão restrito grupo com apetite a mais.
Ainda hoje me interrogo sobre a vivência daquela fase. Era jovem, não tinha compromissos e sempre gostei de me divertir. Vivia sozinho, e felizmente, sempre ganhei para as minhas diversões. Foi uma fase boa, engraçada, direi até um período fabuloso, mas ruinoso, potenciei amizades com loucura à mistura.
Esbanjei a rodos saúde e dinheiro.
Foram umas centenas de dias de “amor” à temperatura da brasa, com sexo intervalado por cerveja, champanhe e comida.
De manhã, à tarde e à noite só pensava em sexo, os sonhos quase sempre eróticos e as conversas invariavelmente obscenas, mas sobretudo gostava de praticar e várias vezes ao dia sem importar o sítio. Trocas de serviço, espaços frequentados, viagens, com destinos preferencialmente para paraísos sexuais: Pérola do Atlântico, Cabo Verde, Cuba, Brasil... tudo era planeado em função do desejo sexual.
Tornou-se uma obsessão, um completo transtorno do controlo dos impulsos. À compulsão por sexo juntou-se uma insatisfação permanente. Talvez tenha procurado uma relação ideal que não existe, com uma mulher perfeita que nem sei ao certo como é. As que tive quando cediam perdiam o interesse. Quando havia luta, a recusa aumentava a adrenalina, o sucesso só podia ser o prémio final.
Foi casualmente, e através da escrita que consegui ter uma perspectiva real dos sentimentos que envolviam as minhas acções. A partir desta auto-descoberta iniciei um processo de mudança estrutural. Quis voltar à normalidade.
Terça-feira acordei tarde. Era o meu último dia por terras beirãs. Tinha decidido sair pelas 16 horas, resolvi então sair mais cedo, logo após o almoço. Já por ali não fazia nada e incrivelmente apetecia-me andar de mota. Deposito atestado e equipo-me para papar os longos quilómetros da raia até ao mar.
Mal arranco e o meu pensamento começa a varrer em retrospectiva todos os acontecimentos recentes. As dúvidas assolam-me sobre a minha existência e o que me anda a acontecer.
Sei que algures, mais adiante na minha vida, hei-de encontrar quem queira fazer uns passeios comigo na vida.
Sim, eu sei, está escrito.
Mas talvez fosse agora que eu queria não sentir este vazio de viajar sózinho.
Queria só dar um sentido à minha viagem da vida.
Sei, já sei que nada dura para sempre.
Mas, interrogo-me sem resposta, porque haveria eu, agora, já passado do meio século, viver martirizado por um coração debilmente apaixonado por uma mulher que o não deseja, e também o não merece.
É um sofrer em silêncio, que silenciosamente vai matando.
Sei que ninguém adoece porque quer, nem ninguém tem prazer no sofrimento
Como diria Roger Martin du Gard, in Os Thibault
Não quero mais ser como a abelha saqueadora que vai sugar o mel de uma flor, e depois de outra flor.
Quero ser como o negro escaravelho que se enclausura no seio de uma única rosa e vive nela até que ela feche as pétalas sobre ele; e, abafado nesse aperto supremo, morrer entre os braços da flor que elegeu”.

Com a devida vénia ao Grande Fernando Pessoa. aqui transcrevo um maravilhoso poema, que espelha o retrato da minha Alma:

O Amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio"
Alberto Caeiro - O Pastor Amoroso

Não pedi para nascer, não consegui, também não quis, que alguém me amasse.
Tomei sempre as decisões erradas.
Agora vou deixar que a vida decida por mim
Zé Morgas