Acabou por ser mais rápida a chamada
para a reparação da minha hérnia inguino crural, do que
inicialmente previra.
Inscrito e registado em 19 de Agosto na
lista de espera para cirurgia na especialidade de Cirurgia Geral,
assumiu o Hospital do Litoral Alentejano o compromisso, por escrito,
de me operar no tempo máximo de espera de nove meses.
Com surpresa, fui chamado para a
consulta de anestesiologia e exames pré operatórios no dia 29 de
Setembro.
Nesse dia fiquei a saber pela médica
de serviço que a cirurgia se efectuaria sob o efeito de anestesia
epidural, pela enfermeira fui informado dos procedimentos a respeitar
antes de dar entrada no hospital dia 10 de Outubro pelas 8 da matina
para a realização da dita cirurgia.
Sabendo da fominha que me aguardava a
partir de sexta feira, quinta feira, dia de cozido à portuguesa no
restaurante Ti Lena, em Deixa o Resto, foi ai que decidi sentar as
nalgas e atabojar-me com uma valente travessa de couves, muita carne
sortida e bom toucinho branco de três dedos, tudo bem mergulhado em
tinto de boa uva, na companhia de três amigos.
A vida sempre é demasiado curta para
se beber mau vinho.
Foi no restaurante, que um grande
amigo, o Prof, me obrigou a acompanhá-lo na sua viatura no dia
seguinte até à porta do Hospital. Por teimosia estava disposto a ir
sozinho na minha viatura, tal como o fizera na operação anterior.
Sexta feira, à hora combinada dei
entrada no serviço de cirurgia de ambulatório.
Preenchida a papelada do costume, breve
estava a cumprir um ritual que ainda não tinha esquecido: tira
roupa, veste bata da frente para trás, aperta bata, calça meias
elásticas que mordem as virilhas, e há que aguardar
desconfortavelmente deitado o agonizante momento das picadas de
agulha.
Entubado a soro na mão direita,
colocado no braço esquerdo o acessório do medidor de tensão
arterial que sempre que enchia quase me garroteava o braço assim
permaneci quase duas horas.
Cerca das dez da matina começou o
transporte e a transferência para a sala do “corte”.
Seis foram as pessoas que contei, não
sei se mais havia presentes. Reconheci o médico cirurgião que me
tinha diagnosticado a hérnia, a médica e a enfermeira do serviço
de anestesiologia.
Fui então informado com uma linguagem
técnica que não domino, mas lá percebi que iria ser submetido ao
efeito da anestesia Raqui, ou raquidiana, dada na zona da vertebra
L4, e iria sentir apenas uma picada e um efeito fresco.
Deitado de papo para o ar sobre a
marquesa foi-me então ordenado que me deitasse sobre o lado
esquerdo, encostasse a cabeça ao peito e flectindo as pernas pelos
joelhos as encostasse à barriga.
Sei que não tenho um corpinho de
atleta contorcionista, pese o facto de ser bastante perfeito, 1300 cm
de barriga, 1230 cm de peito, e, quase sete arrobinhas de pura elegância,
faltam umas poucas milésimas partes do quilograma.
Tentei sem conseguir a posição
desejada, súbito sinto a bata que se desaperta, duas mãos na cabeça
a empurrá-la direitinha ao peito, duas mais a empurrar-me os pés
contra as coxas, duas mais a puxarem-me os joelhos contra a barriga e a
barriga de alguém a roçar-me as nalgas.
Oh Diabo!!!
De onde vieram tantas mãos? Valha-me
ao menos que eram todas mãos femininas.
Naquela posição corcunda, sentia-me
fragilmente exposto e demasiadamente vulnerável, foram cinco ou dez
minutos que me pareceram horas.
Senti um toque e uma ligeira pressão nas costas, uma leve picada,
pouco tardou a sentir a imobilidade e insensibilidade do umbigo para
baixo.
Puseram-me novamente de papo para o ar.
Amarraram-me os braços, totalmente abertos. De olhos igualmente
abertos e atentos a tudo, correram à frente do meu rosto uma mini
cortina, nada via mas tudo ouvia. Em silêncio, confesso, estava
assustado, quase apavorado.
Aos poucos fui acalmando e assim me
mantive quase duas horas.
Ouvia perfeitamente o que o cirurgião
chefe dizia ao estagiário, aprendiz “cortador”, e pensava para
os meus botões - Lá se vai mais uma tirinha de toucinho com alguma
carninha de permeio.
Quase a bater o meio dia informou-me o
cirurgião chefe que tudo tinha corrido lindamente.
Perguntei a um enfermeiro que apareceu
para me transportar quanto tempo levaria até voltar a sentir os pés.
Cerca de hora e meia, duas horas, disse-me.
Fui conduzido para a sala de recobro na
zona da cirurgia do ambulatório, mas numa conversa murmurada entre
uma médica e a enfermeira de serviço percebi que daí a pouco tempo
passaria para o 2º andar para os cuidados pós operatórios. Nesta
curta permanência levei duas ou três advertências para o facto de querer
levantar a cabeça e espreitar as pernas e os pés. Tal movimento e por efeito
da anestesia podia despoletar umas indesejáveis e arrasadoras enxaquecas.
A subida ao 2º andar aconteceu pelas
duas da tarde, e pés nem senti-los.
Uma sala com quatro lugares, três já
ocupados, duas mulheres e um homem. Como o senhor sublimemente
entoava umas graves notas de roncopatia!
Arrumado no meu canto, desconfortavelmente deitado numa estreita cama onde os braços apenas as guardas laterais os amparavam e suportavam, (a saudade que senti do meu confidente leito de prazer) numa
silenciosa luta interior aguardava ver os pés a mexer.
Aconteceu quase pelas seis da tarde. O
efeito da anestesia durou perto de oito eternas horas.
Novo martírio começou.
Já levava cerca de 10 horas deitado de
costas, com a passagem do efeito da anestesia, comecei a sentir nas
costas e nos calcanhares umas dores horríveis. Aquelas meias
elásticas causavam-me uma irritação violenta...
Hora de jantar.
Foi-me servido apenas
uma dietética sopa de cenoura. Que desalento!
Pelas oito da noite a enfermeira
permitiu que me sentasse num cadeirão existente na sala para alívio
dos calcanhares e das martirizadas costas.
Obrigado, regressei à inóspita cama
pelas dez da noite. Apagaram-se as luzes.
No ar os coloridos reflexos dos
monitores onde estavam visíveis os gráficos do registos de tensão
arterial de cada utente do espaço.
Rápido percebi que não iria dormir
nadinha. Os medidores de tensão em média mediam a tensão três
vezes por hora a cada utente, ruidosos no enchimento e no final de
leitura, trabalhavam uma média de doze vezes por hora, tão
incrivelmente bem coordenados que havia ruido a cada cinco minutos.
Uma eficaz forma de manter a profissional de saúde em permanente
vigília máxima.
Sofri, tanto que me culpei, por não
ter levado uns tampões auditivos e um tapa-olhos que muito uso nos
meus passeios moto turísticos.
Para agravar a situação, as costas
teimavam em cada vez me doerem mais e o meu estômago clamava
ardentemente por sólidos. Não posso omitir aqui a gentileza da
enfermeira de serviço, que a lamentos meus, lá me ofereceu umas
mini bolachinhas de água e sal. Chegou depois o pequeno almoço. Tive
direito a uma carcaça e um pacotinho de manteiga...
Começou o processo da alta médica.
Leram-me a "cartilha" do que não deveria
fazer nos próximos dias, com especial enfase para a total ausência
de efectuar esforços de qualquer natureza.
Saí pelas 11 da matina na companhia de
um casal Amigo de longa data, morador no meu bairro.
Mais uma experiência de vida que não
quero voltar a repetir.
Ficam marcas que o próprio tempo jamais apaga.
Zé Morgas