Sei pela vida vivida que as aparências escondem muitas coisas, um medo desconhecido, uma dor profunda, uma mentira complexa, um sentimento alimentado secretamente, um mundo completamente diferente do que se vê...
Por detrás da coragem, sempre existe um medo, no meu caso as agulhas das seringas, é preciso mostrar força para o mundo quando se é o mais apavorado de todos os seres vivos do planeta.
É uma batalha própria, interna e constante, cada segundo na presença de uma agulha passa lentamente e ás vezes, até duvido, nem acredito em mim mesmo.
Sozinho, e com estes pensamentos na cabeça, dirigi-me na quarta-feira, dia 14 de Setembro pelas catorze horas, ao Hospital do Litoral Alentejano afim de ser internado para ser submetido a uma pequena cirurgia, a reparação de uma hérnia incisional.
Concluído o ritual da papelada da inscrição, mandaram-me aguardar na sala que também serve de refeitório no piso 2, e pouco tardou a ser contactado por uma enfermeira que me encaminhou ao quarto A 206 e me indicou a cama 25, que seria o poiso da minha dormida por supostamente duas noites, e o armário onde guardar o pouco que levava.
Foi-me entregue um pijama, (tinha sido informado durante a consulta de anestesiologia que teria de usar a farda do hospital, confesso que nem um pijama tenho, nunca usei tal peça de vestuário) de imediato trocado por um tamanho XXL, pese o facto de com muita dedicação e entrega física a uma bicicleta elíptica, ter perdido umas honráveis graminhas nos dois últimos anos.
Com esforço redobrado dos botões, sempre na ânsia de abandonarem a casa, lá agasalhou o meu esbelto corpito de peso pesado.
Deitado sobre o colchão em pose experimenta cama, a olhar o tecto, a geometria e a decoração do espaço, vejo a entrar no quarto uma bonita enfermeira que com uma terna e meiga voz os quatro residentes - pacientes cumprimenta com votos de “Boa tarde”.
Corre uma cortina e dá alguma privacidade ao espaço onde estava deitado outro paciente. Contudo, tal não invalida que tudo se ouça. Percebo que a tarefa a executar era, e perdoo-me a vulgaridade do termo, desconheço em absoluto o termo técnico de tal acto, enfiar um clister nas nalgas do paciente.
Ecoam no ar uns ais doridos, ouço aquela terna e meiga voz:
- Senhor..., fiz como das vezes anteriores, pus bastante gel, mas sabe, já está um pouco dorido.
A sofrer mas resignado lá dizia o paciente:
- Pois é, pois é, mas têm de ser, aiii, aiiiii, mas tem de ser, aiii, aiiiii…
Oh, oh se tinha. Pelo sustenido do gemido fiquei com a firme certeza que aquela porra deve doer à séria, e sei lá se enfiado em profundidade não deixará roto o recto!!!
Tarefa cumprida, saiu a enfermeira que voltaria momentos depois e me submeteu a um breve questionário.
Respostas obtidas, disse-me que teria de me rapar os pelos na zona da área a operar. Porque sei o que sofri quando da queda da mota, antes de rumar ao hospital cortei eu próprio os pelos com uma máquina de cortar cabelo. Disse-lhe isso.
- Vamos ver, ouvi, e começou a fechar o cortinado ao redor da minha cama.
- Abra o casaco, baixe um pouco as calças e as cuecas. Senti a "migalhinha" que já por incontáveis vezes me fez escandalosamente feliz, gelidamente arrepiar de todo.
Uma sentença rápida:
- Vou ter de lhe cortar os pelos a partir do meio das pernas.
Coa breca, a hérnia é na barriga, quase junto ao peito. Porquê rapar tanto? Interroguei-me admirado e em silêncio!
- Se têm que ser, que seja, respondi-lhe.
Segui-a até uma sala na outra ala do corredor.
Desconfortavelmente deitado sobre uma maca estreita coberta por um lençol branco de papel, começa o "serviço de tosquia" com ruidosa máquina, e, para espanto meu, delicadamente feito, só na zona abdominal.
Voltei ao meu quarto e à minha cama. Uma sesta ajudaria a passar o tempo. Sonolentamente embalado ouço novamente aquela terna e meiga voz a dizer para o paciente que pouco tempo antes ouvira gemer:
- Sabe, possivelmente é operado pelo lado da barriga e vou ter de lhe cortar os pelos.
Corrida mais uma vez a cortina para evitar aqueles indesejáveis olhares curiosos, o som da máquina de barbear “timbila” pelo ar, cessa a minha sesta, deixo-me então conduzir numa viagem ao meu tempo de menino e à minha grave queda de mota, ocorrida já lá vão mais de Dez Anos.
Algumas foram as vezes que fui ao hospital e à Casa do Povo em Penamacor para ser observado por médicos e enfermeiras, consultas, levar injecções, etc, etc.
Cresci em menino, tal como os meus companheiros, hoje homens de cinquenta e mais anos, com a imagem das profissionais de bata branca de rostos, alguns já rugosos e sempre com vozes autoritárias, ordens eram para cumprir sem pio, sobrepunham-se mesmo à voz do poder maternal,
- Se a Srª. Enfermeira o diz…
Com o advento do 25 de Abril de 1974 novos Mundos chegaram ao mundo dos jovens adolescentes que pelas Beiras Interiores viviam.
Quem não recorda ainda com alegria e alguma nostalgia, e deixo-me aqui de falsas hipocrisias, as milhentas revistas folheadas da frente para trás de trás para a frente, com aquele mulherio lindo de corpos curvilineamente torneados, vestidas com curtas batas brancas, meias altas, ligas sexy, toucas nas cabeças, com a bandeira Suiça, a cruz branca sobre fundo vermelho, estampada nos pontos mais devoradamente olhados.
Um vigorosíssimo motor de arranque para os "pobres" jovens carentes, entrados na puberdade, andarem numa constante azáfama a "contar caibros", era à esquerda, era à direita, sempre a malhar na trave. Ah! mãos calejadas!
Por essa altura também, fiz as primeiras visitas ás Capelinhas de Baco em Penamacor, havia por lá umas dezenas, as conversas ouvidas na altura aos mais adultos no intervalo de um "copo de três", já invariavelmente, e para esquecerem a vida dura das agruras do campo, eram sobre mulheres, os tipos de mulheres... e onde à socapa se faziam passar de mão em mão as tais fotos sacadas nas revistas, para uns lânguidos, voluptuosos e deleitosos olhares, moralmente reprováveis, proibidos mesmo.
É mais que sabido que a grande ambição das mulheres é a de torturar, humilhar, castigar, esmagar e infernizar a vida aos desgraçados dos homens que se lhes atravessam ao caminho.
Para a maior parte do mulherio, a sua concepção de vida eterna no paraíso é semelhante à de uma câmara de tortura da Inquisição, em que elas, refasteladas num sofá, assistem ao espectáculo de uma fila de machos a serem destroçados, e onde se reconhecem os ex-namorados que as trocaram por uma boazona qualquer, os vizinhos que lhes rosnavam no elevador, o colega da escola que troçava das tranças e uma infinidade de outros marmanjos que tiveram o azar de cruzarem com elas num dia em que estavam com a bolha.
Felizmente para nós, isto resume-se a sonhos que pouco nos incomodam.
O pior é que há algumas que não têm pachorra para esperar pelo dia do juízo final e resolveram tratar do assunto mais pragmaticamente cá na terra.
É desta estirpe que são recrutadas grande parte do enfermeirame.
O que as motivou para abraçarem a profissão foi precisamente a possibilidade de nos tratarem a pontapé e abaixo de cão, sem se sujeitarem ao justo castigo a que não escapariam noutra circunstância.
Mas não.
Apanham-nos debilitados, prostrados numa cama manhosa de hospital, incapazes de arrastar uma gata pelo rabo e vá de nos humilhar com todo o desprezo, e a deixarem bem claro que não passamos de uns seres desprezíveis nas mãos delas.
De cada vez que o enfermeirame topa com um desgraçado, assume de imediato o papel de anjo vingador, destinado a infligir-nos todos os castigos por tudo aquilo que fizemos, ou que eventualmente possamos vir a fazer, a todas as mulheres do universo.
Começam logo por nos mandar despir até à cabeça, mesmo que o problema seja uma unha encravada. O objectivo é exclusivamente o de nos pôr à rasca, porque é óbvio que o desconfortável da situação, o frio e a figura repelente da profissional de bata não permitem a exibição dos atributos em estado resplandecente, muito antes pelo contrário. É já com um esgar de gozo e desprezo que ela rosna um - Deite-se, num tom infinitamente mais humilhante do que aquele que usamos para com o rafeiro lá de casa.
Mas o pior é quando lhes mandam aplicar-nos qualquer instrumental.
Até os olhos se lhes riem nos momentos que precedem o espetar das agulhas, o apertar os garrotes ou enfiar a algália. E a coisa é sempre feita com requintes de malvadez, ignorando completamente as nossas reacções à tortura, dando a entender que somos completamente dispensáveis e que por elas tanto se lhes dá que lerpemos logo ali ou que nos piremos para casa. Aproveitam-se cobardemente do nosso estado de fraqueza.
Absorto nestes maliciosos pensamentos e caducas análises infundadas de conversas de tasca, algumas coincidências com a realidade são meros casos raros de unhas encravadas…ouço:
- Tenho que lhe dar uma injecção na barriga. Posso?
- Com que fim? perguntei. Mais do que propriamente saber o que me ia injectar, precisava de num ápice me preparar psicologica e mentalmente para o tormento da visão da agulha e o flagelo da picada.
Uma explicação detalhada, e interiorizei o fluido injectável com sendo um anti coagulante do sangue.
Nem senti a picada, para grande alívio meu. Que doçura.
Chega a hora do jantar e uma provocação aterradora ao meu estômago:
Uma sopa líquida e uma gelatina com sabor desconhecido do meu paladar.
Findo o jantar, nova visita da Enfermeira de serviço, a oferta de um comprimido Lorazepam, relaxante, para melhor dormir, pelas 11 horas bebi um cházinho sem açúcar de um sei lá qual aroma, troca de turno do pessoal em serviço, luzes apagadas, e havia que aguardar pelo dia seguinte.
Noite calma, acordei com o toque de alvorada feito pelo ruído das persianas a subirem.
Uma auxiliar de serviço deixa toalhas para o banho e roupa limpa junto ás camas. Com surpresa verifiquei que a minha bata se vestia da frente para trás, e mais, para usar tinha umas meias elásticas que lambiam as virilhas e duas mini embalagens de um poderoso purgante rectal.
Homem sofre.
Corpinho purgado, banhinho tomado, uma carinha laroca, vestidinho assim, quase parecia uma bailarina espanhola de “tablao sevilhano”. Faltaram os sapatos.
Recebo a visita de duas enfermeiras, novinhas, estagiárias penso, lamentei o facto de não ter direito a tomar o pequeno-almoço, deram-me um comprimido relaxante que coloquei debaixo da língua para surtir o efeito desejado, e, começou o doloroso martírio de umas picadelas no braço esquerdo para me colocarem um cateter. Concluído o serviço, alertei não estar correcto, disseram-me que tudo estava bem, até uns 20 minutos depois, sentia uma dor cada vez mais premente.
Pedi par ser observado. Confirmado o erro da colocação, trocaram o cateter que me injectava o soro …para uma veia na mão direita.
O braço esquerdo e mão esquerda tinham o dobro da volumetria do braço direito e mão direita, e uns belos pensos brancos como ornamento. (Sofri a descolá-los do pelo. Deveria ter "tosquiado" os braços também).
Ficava assim em espera até ser encaminhado para a sala de operação.
Disse-me então uma enfermeira que após a operação, seria colocado na sala de recobro e só por volta das 20 horas regressaria ali, aquele quarto, aquela cama.
O tempo ia passando, e numas palavras soltas ouvidas, tive a percepção que algo havia corrido mal na intervenção cirúrgica que precedia a minha.
Chega a hora do almoço. Só estávamos dois residentes no quarto. Chegou apenas uma refeição. Fiquei a ver navios. Vi uma enfermeira no corredor, chamei-a e perguntei-lhe o que se passava comigo. Disse-me nada saber, percebi que por claros motivos ético profissionais e que respeito. Manifestei-lhe a minha vontade de abandonar o local e ir almoçar algures para os lados de Deixa o Resto.
Cerca das 14 horas, uma enfermeira veio ter comigo e dizer-me que ia comer uma sopinha, e o médico, não me disse qual, viria falar comigo.
Reforçei a minha ideia que algo anormal se passava.
Sabendo que para ser operado, necessitava de um longo período de jejum, tive a certeza que o não seria nesse dia, alimentando a esperança de ser operado no dia seguinte.
Ao paciente - residente na cama em frente à minha, a 22, fora dada alta médica, chegaram então as auxiliares de serviço afim de mudarem toda a roupa para novo utente, já em espera no corredor. Uma auxiliar deixou escapar que a roupa da cama 25 era também para substituir, porque eu iria ter alta.
Que surpresa choque!!!
Fui avisado da alta médica, pelas duas enfermeiras que me “desentubaram o soro” para poder sair em total liberdade do hospital, sem compromisso algum de lá voltar, e que, na hora da despedida, com muito profissionalismo, dedicação e ternura...(qualidades extensivas a todo o pessoal sem excepção, que me “tratou” naquele serviço, incluindo a simpática estagiária que sem querer, me “provocou o brutal inchaço do braço esquerdo” a quem deixo um sentido conselho:
Há coisas na vida que ninguém aprende sem cometer erros, errar faz parte do conhecimento. Há apenas uma classe a quem não perdoo os erros e é até fantástico, quando lhes pagam muito bem para fazer aquilo que não sabem, mesmo que isso implique fazer asneiras de todo o tamanho. Essa classe é a nossa classe política.)... me avisaram do problema da minha tensão alta, problema que há anos conheço e pouco respeito.
Em verdade não quero morrer com muita saúde, nem rico.
Quero apenas viver muito, sem sofrer.
Sofrer doí.
Não tenho medo à morte; a morte indiscutivelmente um dia levar-me-á com ela.
O médico, como me tinha sido dito pela enfermeira, não compareceu para me dar a alta, numa clara falta de ética e pouco respeito pelo paciente, que ali esteve internado durante 24 horas à espera de um serviço de cirurgia, para o qual, com muito sofrimento foi medicado e preparado, e que lhe não foi prestado.
Sai do hospital sem ver a minha situação clínica resolvida, e em piores condições do que aquelas com que para lá entrei, o braço esquerdo e a mão esquerda anormalmente inchados, incomodativas dores na zona onde esteve espetado e amarrado o cateter, completamente perturbado psicologicamente e animicamente desgastado.
Zé Morgas